«مَا تَرَكْتُ بَعْدِي فِتْنَةً أَضَرَّ عَلَى الرِّجَالِ مِنَ النِّسَاء»

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Folhetim de Torga II

...continuando...
"A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo - maneiras, como se vê, difíceis e reticentes - , e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. Quanto em mim é instinto e compreensão, sabe de há muito que os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos.
Em suor, que foi como os meus avós almocreves mo revelaram, numa caminhada semanal que metia caldo de abóbora em Valongo e lobos no resto do caminho, ou em semente do nome deste nosso Portugal, que assim mo explicou o senhor Botelho numa escola onde se aprendiam coisas que tinham sentido, o meu primeiro Porto é nebuloso e distante.
- Trinta léguas de rota batida, filho, para ter a montanha farta de bacalhau, arroz e sabão... - ouvia eu, com seis anos.
- Ora, como na margem direita do Doiro havia uma povoação chamada Portucale... - ia explicando o meu mestre.
A grande pedra de ara da minha meninice, o Marão, dividia o mundo em dois. E na metade que se não via ficava esse Porto só adivinhado, mas donde vinha já, positivo e genuíno, o que ele tinha de seu: a sólida alimentação do corpo, conquistada a mortificação, e o fermento para levedar um pão mais alto.
Com os anos, essa primeira descoberta que dele fiz no cansaço dos meus maiores e nas lições do meu professor, alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. Em Cedofeita, a continuar a cavadela deixada em meio pelos que me deram à vida, e na Sé, a olhar pasmado aquelas pedras lavradas, o negativo e o positivo harmonizaram-se na mesma visão reveladora. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. Trabalho duro, contínuo, com lágrimas amargas a refrescá-lo, e dias santos de libertação, com licença de fuga para as alamedas do intemporal."
continuará...

Miguel Torga - "Portugal"