Folhetim de Torga I
"Eu gosto do Porto. Não do Porto erudito do Sampaio Bruno, ou do burguês e literário do Ramalho. Gosto de um Porto cá muito meu, de que vou dizer já, e amo-o de um amor platónico, avivado de ano a ano à passagem para a minha terra natal, quando o menino Jesus me acena lá das urgueiras.
Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, arranjo quarto, e deito-me no aconchedo dessa velha e casta paixão que no une. No dia seguinte, pela manhã, levanto-me, compro um jornal, embarco, e a minha visita anual e discreta acabou.
De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários, e voua o Museu Soares dos Reis ver o Pousão, passo pela igreja de S. Francisco, ou meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boavista. Mas é raro. O regular, o que está sempre no programa, é a coisa seca e peca que ficou dita.
No comboio, dois ou três remoques da razão crítica lembram-me pelo caminho acima que talvez devesse exteriorizar doutra maneira o calor da minha amizade. Honestamente reconheço a pertinência da observação. Mas como sei exactamente a que funduras correspondem cá por dentro essas quase invisíveis marcas de afecto, prossigo viagem, sereno, a pensar que se houvesse para lá da morte alguma janela donde se pudesse olhar a vida, uma das coisas de que eu gostava era de espreitar por ela um dia a ver se o futuro conservava intactas as virtudes essenciais que me fazem querer a esta terra do âmago do coração".
continuará...
"Portugal", Miguel Torga
Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, arranjo quarto, e deito-me no aconchedo dessa velha e casta paixão que no une. No dia seguinte, pela manhã, levanto-me, compro um jornal, embarco, e a minha visita anual e discreta acabou.
De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários, e voua o Museu Soares dos Reis ver o Pousão, passo pela igreja de S. Francisco, ou meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boavista. Mas é raro. O regular, o que está sempre no programa, é a coisa seca e peca que ficou dita.
No comboio, dois ou três remoques da razão crítica lembram-me pelo caminho acima que talvez devesse exteriorizar doutra maneira o calor da minha amizade. Honestamente reconheço a pertinência da observação. Mas como sei exactamente a que funduras correspondem cá por dentro essas quase invisíveis marcas de afecto, prossigo viagem, sereno, a pensar que se houvesse para lá da morte alguma janela donde se pudesse olhar a vida, uma das coisas de que eu gostava era de espreitar por ela um dia a ver se o futuro conservava intactas as virtudes essenciais que me fazem querer a esta terra do âmago do coração".
continuará...
"Portugal", Miguel Torga
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