Notas de Rodapé
As edições de textos clássicos trazem sempre uma controvérsia: as notas de rodapé. Colocar notas de rodapé para ir explicando as incidências e simbologias do texto ou não colocar qualquer comentário para a leitura correr mais prazenteira?
Este problema põe-se, principalmente, porque os tradutores/editoras não decidem claramente se o objectivo do livro é ser um trabalho académico ou um trabalho de apreciação artística.
Voltando a Frederico Lourenço, este tradutor optou claramente por não colocar qualquer nota de rodapé na sua Odisseia para permitir um fluir do texto mais natural. Pelas suas palavras "...resisti à tentação de salpicar o texto com notas, convicto de que o intuito principal que presidiu à composição da Odisseia foi de enlevar e comover os ouvintes por meio de uma história empolgante, maravilhosamente contada."
Ora eu fiquei muito contente com esta opção e penso que, no contexto editorial escolhido, é um ponto a favor. É evidente que se o tradutor optasse por uma edição académica, com fins de estudo ou de tese, o caminho não seria este. É também evidente que gostei muito da leitura em causa porque já antes tinha lido uma versão cheia de notas de rodapé que, confesso, me deram imenso jeito para entrar dentro das simbologias Homéricas. Provavelmente, se tivesse mergulhado directamente naquela experimentaria mais dificuldades.
Ou seja. Fica feio mas dá muito jeito. Tudo seria perfeito se houvesse pelo menos duas versões de cada obra, cada uma com sua opção clara: usufruto artístico ou tese académica.
Causado por esta confusão de objectivos editoriais que grassa nas nossas traduções, surge um outro problema: o exagero. A título de exemplo, tenho comigo um livro que reside nesse terreno dúbio, em que não é estudo académico completo mas em que, simultaneamente, não consegue funcionar com fluidez de leitura; é a Oresteia de Ésquilo, numa tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, ilustríssimo Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mais uma vez confesso que uma ou outra nota que me explique qual o significado de certas referências familiares de Agamémnon ou de Orestes me ajudam muito e me poupam algumas idas a dicionários de mitologia Grega. Mas, como não frequento a Faculdade de Letras em Coimbra e comprei o livro para saborear a trilogia trágica, não consigo compreender porque é que o Dr. Manuel Pulquério me corta o prazer da leitura com notas constantes como "Entendo, como Page, que se deve manter a tradição no v.798" ou "não há razão para suspeitar do v.925, que reforça, muito naturalmente, o v.922"! O caso torna-se mais grave quando, em vez de nos dar dispensáveis explicações sobre as várias soluções de tradução que os autores adoptam por esse mundo fora, as ditas notas me ajudam a intepretar os excertos que li. Perante "Saliente-se a ambiguidade ameaçadora das palavras de Clitemnestra" ou "Repare-se no duplo sentido sinistro" não consigo deixar de pensar que provavelmente os alunos do referido curso de letras não conseguem detectar as ambivalências do texto e as subtilezas da escrita de Ésquilo por si próprios. Necessitam que a nota lhes avise que Clitemnestra é ambígua ao vaticinar que Agamémnon vai entrar na casa em que não esperava entrar...
Para acabar, gostava de referir que este pretende ser apenas um contributo para a discussão. Muito devemos ao Prof. Manuel Pulquério por nos dar a oportunidade de apreciar em Português a única trilogia dos grandes tragediógrafos Gregos que chegou até nós.
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