Folhetim de Torga III
“Pelas frestas do quotidiano, os olhos curiosos de criança iam ao mesmo tempo descobrindo, abusivamente inserido nessa unidade, o ultraje de uma vida elegante, faustosa, convencional e fácil. Cruelmente parasita do enxame que moirejava e abstraía, gente sem coração, desenraizada, possessa do demónio da preguiça e do desprezo, bebia, sem lhe sentir o gosto, o sumo agridoce do sacrifício e da ilusão dos outros. Era triste e desanimador. Mas uma verdade maior velava. E pelas ruas a cabo, daí a pouco, Santo António acima, Sá da Bandeira abaixo, Femandes Tomás além, calma, pacata, de corrente ao peito, a velha urbe retomava a humana dignidade.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais
pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu então de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte de D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei, deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espiritual e feliz nos cumes das torres. A idade, os livros, e aquela ciência certa que o sofrimento nos traz, haviam-me já dado forças para conceber símbolos e decifrar enigmas. E pude descobrir finalmente o ovo de Colombo. Se todas as terras do mundo tinham o seu cartaz gustativo - queijadas, ovos moles, arrufadas, morcelas e pão de ló, para dar alguns exemplos -, o Porto tinha dois. Um, grosso, terroso, sujo como a trivialidade da natureza - as tripas; outro, subtil, etéreo, imponderável como a própria magia - o vinho fino. Um para a exigência das nossas pançadas lusitanas; outro para a sede sem fim da secura universal.
pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu então de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte de D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei, deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espiritual e feliz nos cumes das torres. A idade, os livros, e aquela ciência certa que o sofrimento nos traz, haviam-me já dado forças para conceber símbolos e decifrar enigmas. E pude descobrir finalmente o ovo de Colombo. Se todas as terras do mundo tinham o seu cartaz gustativo - queijadas, ovos moles, arrufadas, morcelas e pão de ló, para dar alguns exemplos -, o Porto tinha dois. Um, grosso, terroso, sujo como a trivialidade da natureza - as tripas; outro, subtil, etéreo, imponderável como a própria magia - o vinho fino. Um para a exigência das nossas pançadas lusitanas; outro para a sede sem fim da secura universal.
Bem sei que nem as tripas são fundamentalmente a comida desta terra, nem o vinho generoso nasce nas suas ruas. Mas o facto de Portugal e o mundo ligarem os dois nomes ao nome que designa este burgo, tornava evidente a justeza da síntese. De longe se viu que uma dualidade permanente, dialéctica como a vida, se perpetuava aqui, num fluxo e refluxo que só lhe davam grandeza e naturalidade. Espírito e matéria - são a soma da Vida. Uni-los, dar-lhes o sustento de que necessitam, ambrósia a um, dobrada a outro - não é vergonha: é autenticidade!
Assim compreendi eu o Porto dos meus vinte anos, e, desde então, pouco mais adiantei. Apenas consegui alargar o seu mítico horizonte, numa limpa e honesta meditação.
Nesse sentido, a ajuda maior que recebi foi a do senhor Agostinho Peixoto, que tinha loja de negócio na minha aldeia. Outros homens mais sábios e mais ilustres disseram-me, evidentemente, também coisas belas e profundas da cidade e da sua gente. Mas eram homens sábios e ilustres, os menos indicados para certas clarificações. Por isso os meus ouvidos abriram-se mais para as palavras simples do vendeiro.
- É de confiança? - interrogava a freguesia, a apalpar a chita.
- É do Porto, caramba! - arreliava-se ele.
- É do Porto, caramba! - arreliava-se ele.
Polícia reformado por causa do Trinta e Um de Janeiro, o honrado comerciante mantinha no desterro das berças, religiosamente acesa, uma brasa da fogueira onde arderam tantos corações. E à noite, quando os companheiros vinham para a bisca, perguntava à mulher se o chá era de couves para ferver tanto, e começava a sua história sem fim :
- Pois é verdade: o sargento principiou desta maneira: - Rapazes, isto há viver e morrer.
Mas, pela liberdade, eu acho que vale a pena arriscar tudo... - Estávamos na formatura. E eu perco a cabeça e digo: - Pois há-de ser o que for! Vamos a ela, meu sargento!
- A ela, a quem? - perguntava invariavelmente o Pinto, quando a narrativa chegava à heróica e dramática decisão.
E o senhor Agostinho, sempre paciente na explicação do grande rasgo da sua vida, esclarecia:
-À liberdade, homem! A que havia de ser?!
Gordo, baixo, calvo, a medir copos de jeropiga, não era com facilidade que se partia dali para os mártires de 1828, para os heróis de D. Pedro IV, ou para os que tiveram num minuto de fé a alma de Antero a iluminá-los. Mas naquela encarnação grosseira estava retratado o Porto, pela razão simples de que tudo o que em si é de facto espírito-santo, em vez de eleger a habitual e alada pomba, corporiza teimosamente numa desajeitada e mais terrena ave familiar."
Miguel Torga, "Portugal", Porto
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