«مَا تَرَكْتُ بَعْدِي فِتْنَةً أَضَرَّ عَلَى الرِّجَالِ مِنَ النِّسَاء»

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Folhetim de Torga III

“Pelas frestas do quotidiano, os olhos curio­sos de criança iam ao mesmo tempo descobrindo, abusivamente inserido nessa unidade, o ultraje de uma vida elegante, faustosa, conven­cional e fácil. Cruelmente parasita do enxame que moirejava e abstraía, gente sem coração, desenraizada, possessa do demónio da preguiça e do desprezo, bebia, sem lhe sentir o gosto, o sumo agridoce do sacrifício e da ilusão dos outros. Era triste e desanimador. Mas uma ver­dade maior velava. E pelas ruas a cabo, daí a pouco, Santo António acima, Sá da Bandeira abaixo, Femandes Tomás além, calma, pacata, de corrente ao peito, a velha urbe retomava a humana dignidade.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais
pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu então de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lem­branças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte de D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei, deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espiritual e feliz nos cumes das torres. A idade, os livros, e aquela ciência certa que o sofrimento nos traz, haviam-me já dado forças para conceber símbolos e decifrar enigmas. E pude descobrir finalmente o ovo de Colombo. Se todas as terras do mundo tinham o seu cartaz gustativo - queijadas, ovos moles, arrufadas, morcelas e pão de ló, para dar alguns exemplos -, o Porto tinha dois. Um, grosso, terroso, sujo como a trivialidade da natureza - as tripas; outro, subtil, etéreo, imponderável como a própria magia - o vinho fino. Um para a exigência das nossas pançadas lusitanas; outro para a sede sem fim da secura universal.
Bem sei que nem as tripas são fundamental­mente a comida desta terra, nem o vinho generoso nasce nas suas ruas. Mas o facto de Portugal e o mundo ligarem os dois nomes ao nome que designa este burgo, tornava evidente a justeza da síntese. De longe se viu que uma dualidade permanente, dialéctica como a vida, se perpetuava aqui, num fluxo e refluxo que só lhe davam grandeza e naturalidade. Espírito e matéria - são a soma da Vida. Uni-los, dar-lhes o sustento de que necessitam, ambrósia a um, dobrada a outro - não é vergonha: é autenticidade!

Assim compreendi eu o Porto dos meus vinte anos, e, desde então, pouco mais adiantei. Apenas consegui alargar o seu mítico horizonte, numa limpa e honesta meditação.
Nesse sentido, a ajuda maior que recebi foi a do senhor Agostinho Peixoto, que tinha loja de negócio na minha aldeia. Outros homens mais sábios e mais ilustres disseram-me, evidentemente, também coisas belas e profundas da cidade e da sua gente. Mas eram homens sábios e ilustres, os menos indicados para certas clarificações. Por isso os meus ouvidos abriram-se mais para as pala­vras simples do vendeiro.
- É de confiança? - interrogava a freguesia, a apalpar a chita.
- É do Porto, caramba! - arreliava-se ele.
Polícia reformado por causa do Trinta e Um de Janeiro, o honrado comerciante mantinha no desterro das berças, religiosamente acesa, uma brasa da fogueira onde arderam tantos corações. E à noite, quando os companheiros vinham para a bisca, perguntava à mulher se o chá era de couves para ferver tanto, e começava a sua história sem fim :
- Pois é verdade: o sargento principiou desta maneira: - Rapazes, isto há viver e morrer.
Mas, pela liberdade, eu acho que vale a pena arriscar tudo... - Estávamos na formatura. E eu perco a cabeça e digo: - Pois há-de ser o que for! Vamos a ela, meu sargento!
- A ela, a quem? - perguntava invariavel­mente o Pinto, quando a narrativa chegava à heróica e dramática decisão.
E o senhor Agostinho, sempre paciente na explicação do grande rasgo da sua vida, esclarecia:
-À liberdade, homem! A que havia de ser?!
Gordo, baixo, calvo, a medir copos de jero­piga, não era com facilidade que se partia dali para os mártires de 1828, para os heróis de D. Pedro IV, ou para os que tiveram num minuto de fé a alma de Antero a iluminá-los. Mas naquela encarnação grosseira estava retratado o Porto, pela razão simples de que tudo o que em si é de facto espírito-santo, em vez de eleger a habitual e alada pomba, corporiza teimosamente numa desajeitada e mais terrena ave familiar."
Miguel Torga, "Portugal", Porto